31.5.06

O BONECO RECLAMA


MINHA NADA MOLE VIDA DE POPSTAR – O BONECO RECLAMA
Marcelino Rodriguez

Um amigo meu, religioso, costuma me dizer: - Fale a verdade e saia correndo. Nos próximos quinze dias estou metido até os ossos com entrevistas, contatos, arrumações e tentei declinar da jornalista do ediciones que vem me perguntando sobre o que eu achei dos acontecimentos em São Paulo e qual o maior ponto vulnerável do país em que vivo, tudo isso enquanto vejo a despensa com uma latinha de atum e a última Perrier pela metade, enquanto ainda tenho metade da edição do meu livro , sem dúvida um dos melhores já escrito no gênero, para vender.
O que tenho ouvido de papo furado e esnobação, evasivas e inversão de valores, fez-me aceder e conceder a entrevista a jovem uruguaia do ediciones. Quem sabe essa entrevista não apresse-me ganhar logo o nobel ou o Camões e assim posso tocar fogo no resto dos livros e deixar de chatear os outros tentando vender minha versão atual da Divina Comédia, pois lá quem tenha um pouco de inteligência e cultura, pouco se lhe importa ou não o reconhecimento alheio. Sei que um caráter excepcional como eu tem por certo um lugar bom no além.
E Deus não há de deixar seu Boneco desamparado.
Sim, eu sou o Boneco de Deus, como o Pinóquio.
Só que não sei mentir.
De modo que o meu amigo Religioso dizia que o povo aqui reclama do governo , mas é tão picareta e corrupto quanto o mesmo. Pouca gente se preocupa em estudar para ser , não um esnobe, mas um cidadão útil ao seu país. Pouca gente se preocupa em fazer o bem pensando na coletividade. Todo mundo quer ser rei aqui, mas sem estudar as regras da realeza. Quer a coroa sem merecimento. O prêmio sem esforço.
Não funciona assim na Noruega, nem na Dinamarca. Nem vai funcionar aqui. Uma sociedade viciada na criação de feudos, com a população lutando pelo espaço, a sobrevivencia e os holofotes. Lembro-me de um conto de Borges no Informe de Brodie que ele dizia que uma certa população estavam a tacar estrumes uns nos outros como meio de comunicação. È mais o menos o nível que há aqui, onde parece que vivemos todos como náufragos lutando por uma boia que pra permanecer existindo tem que ter mais de um nela, mas se morre afogado por que todos querem pegar a bóia sozinho. O naufrágio coletivo é certo.
O menino pobre me pergunta.
Tio, o senhor vem aqui essa semana trazer o leite?
Não, Alonso. Essa semana não tem leite.
Assim que a queda de um é a queda de todos, ou ao menos de muitos.
A culpa é do governo – vejo muita gente dizer enquanto declina de ajudar seu próximo. Mas o comércio de drogas vende maravilha; assim como o álcool e outras futilidades como músicas ruins. Que tem o governo com isso?
Fiquei zangado por que colaboro gratuitamente com sites de vários países , sem ganhar um centavo, e já vi gente dizendo que está me dando uma oportunidade, publicando meus textos. Ora, podem publicar a vontade desde que me dêem os créditos. Mas, por favor, sem esnobação.
Nem venham me ensinar filosofias, ou passar-me pito. O Boneco de Deus é um ser esclarecido. Ou coça as verdinhas pra valorizar minha obra ou deixa de papo furado.
Preciso levar o leite do Alonso.
E por favor, não confundam meus textos com o de escritores medíocres, ainda que muitos deles estejam na mídia mafiosa no meu lugar. Sim, porque nesse país o que é bom a gente esconde e o que é ruim a gente mostra, como dizia aquele ministro. Finalizando, o país tem que andar sozinho, sem contar com a população – essa, imprestável – põe sempre a culpa no governo. Como se fosse possível um governo corrupto com um povo honesto. Contem outra.
31.05.06

23.5.06

O RATO DA NET, A SUA RÁDIO CLANDESTINA


Marcelino Rodriguez


Recebo uma mensagem de gratidão de uma amiga a quem mandei os versos de Adélia Prado, pela rede. Diz-me ela que não conhecia a obra da poetiza mineira; recebo outras mensagens de todo tipo: esotéricas, de carinhos, de conforto, solidariedade, de ciúmes e até promessas de amores, que, realizados ou não, não deixam de ser manifestações da vida. Às vezes também, alguém que não compreende as minhas intenções, na maioria das vezes, nobre, me diz algum desaforo, ao qual acho graça ou revido. E sou gratíssimo a rede por tudo que ela me tem dado: muito mais diamantes que poeira, mais trigo que joio. Nunca gostei muito de aparecer em público e nem que soubessem minhas boas intenções, já que as más ficam sempre em segredo. E acredito que um dos meus sonhos mais recônditos seria fazer um programa de rádio onde eu pudesse fazer exatamente o que estou fazendo pela rede, compartilhando a vida coletiva sem expor-me pessoalmente. Divulgando culturas e maravilhas que descobri ao longo da vida. Dou-me bem com livros, mas atrapalho-me com as pessoas, muitas vezes (ou as atrapalho também). Outras vezes, sou chato porque escrevo e quem escreve sempre tem algo a dizer a mais ou a menos do que sente da vida. Além de querer se vender. Nunca deixa a vida em paz; é um estranho revide! Aqui não, tudo é gratuito, como no projeto inicial de Deus! Espelho da vida, na rede circula de tudo! Altas e baixas vibrações, e nós, internautas, formamos realmente uma comunidade especial e privilegiada, já que muita gente não tem meios de possuí-la ou sequer sabe de sua existência. Às vezes esquecemos que o mundo é grande e pensamos, ainda que breve, que todos gozam desse privilégio que gozamos de sermos internautas. Não!, Deus escolheu-nos, podem acreditar! Somos nós que aqui estamos que devemos aproveitar essa oportunidade para adquirirmos e distribuirmos cultura, informação e entretenimento. Embora mundial, a rede tem de sobra alegrias sul-americanas Que vem da nossa cultura, literatura e comunidades. Aqui na rede podemos voltar a redescobrir nosso continente, que anda esquecido da mídia de massas alienante, pois influenciada pelo mercado hegemônico externo, quase nunca inteligente. Refiro-me aos “Rambos” do norte. Aqui temos certeza que não é a economia que produz qualidade, mas a verdadeira democracia de expressão, do qual a rede é uma maravilhosa pioneira, em todos os sentidos! Tenho deliciado-me redescobrindo nossos autores e valores, nossa história, nossa labutas ideológicas e políticas. Voltei a sentir-me cidadão, pois aqui, bem ou mal, expresso-me e compartilho a vida, com anônimos e conhecidos, todos igualmente queridos. Voltei a sentir-me vivo e gente humana, já que pelas ruas e relações atuais da vida das metrópoles somos todos anônimos e solitários; andamos com pressa e às vezes assustados. Aqui não, estamos protegidos e articulados. Bem, finalizando, de vez em quando eu mandarei, além das mensagens dos outros, também as minhas (mais raramente, pois sou bissexto por princípio). Não precisam dar-me nada por isso; se não gostarem ou estiverem ocupados, deletem-me ou deixem para outra hora. Se quiserem falar ou revidar, por favor, façam também! E confiem em mim! Estou apenas realizando um velho sonho, o de ter um meio que possa falar sem ser visto, como o personagem de um filme que vi uma vez (não lembro o nome), que distribuía esperanças de sua rádio clandestina, localizada na sua cidade em ruínas. Só que ele dizia que “ele era a esperança, que sua cidade era uma maravilha, e com sua tenaz insistência em não aceitar a derrota (ele era meio pirado), acabou servindo de farol para alguém que procurava um sinal de vida fértil na cidade prometida pelo tal radialista”. Uma vizinha disse-me que eu pareço um Rato de Esgoto, mas que ela gosta de mim. Olhei-me no espelho e vi: eu sou realmente parecido com um Rato de Esgoto; maravilha! Mas a partir de hoje, dezesseis horas e trinta e nove minutos, nasce um novo personagem no show business da Net mundial: O Rato da Net! Daqui sairão mensagens para todos que quiserem acolher a esperança de jamais aceitar o esgoto, pois o Rato da Net afirma pra vocês que tem um pacto com as estrelas. E que jamais será vencido! Publicado em Boneco De Deus, 2002 - Luz do Milenio Editora

O escritor é euro-brasileiro

16.5.06

A FALTA

Esse texto foi publicado no livro A Ilha, em 1999.

A FALTA

Marcelino Rodriguez

Tive uma sensação estranha essa manhã, ao acordar; tive um felling, se me permitem usar essa palavra inglesa para definir o sentimento que me tomou. A sensação de que estava me faltando alguém. Ora, sou solteiro há muitos anos, desde que nasci. E minhas namoradas nunca permaneceram mais que quatro dias na minha cama. De modo que acordar sozinho é o meu cotidiano. A alma já era para estar mais que acostumada. Essa manhã, porém, foi diferente. Não houve nem conformismo nem consolo pela clara falta que havia, acrescentada da sensação de vazio mais impo-tência. E veio a melancolia da banda que faltava. Eu poderia até chorar um pouco de saudade pela falta real de alguém que eu sentia, claramente. Descobri, perplexo, que eu sou eu mais alguém que falta. Isso é tão comovedoramente romântico quanto trágico. Quem é ela? Quem é a outra que não acordou comigo hoje? A outra que é minha? Existe alguém no meu coração, na minha vida, na minha alma. Mas não dormimos, infelizmente (minha boca enche de água e deve haver uma atmosfera soturna ao meu redor quando lembro disso, uma es-pécie de sombra pela falta desse pequeno e fatal detalhe amoroso). Seria dela a estranha saudade de hoje? Uma saudade única e comprometedora? De quem dei por falta hoje, ao acordar? De um anjo que não me velou? Um amor de outra vida? Não era apenas um sentimento de solidão. Era como se alguma parte de mim, outra pessoa (não al-guma compensação psicológica) estivesse me faltando e me enfraquecendo, como se faltasse-me um membro com a falta dela. Era como um absurdo eu estar acordando só. Esse acontecimento soa-me sobre a vida deve-ras revelador, tanto como sou mais que penso como de perplexidade de saber que outra vida, que não sei por onde vai, vai levando a minha junto. Só resta sa-ber porque deixa-me, a tantos e tantos anos, acordar impiedosamente só. E por que só hoje dei-me conta dessa saudade infinita? Talvez desde o Éden essa parte de mim esteja apartada. Mas só hoje, verdadeiramente, dei-me conta da sua real e tangível existência. Pode ser que aquela que hoje me toma o cora-ção tenha alguma participação nesse mistério, pois fora dela não há nem o sonho de outra Eva, nem a esperança de outro paraíso. Alguns que se pensam realistas dirão que tive um surto e tentarão até explicar o fato perceptivo com alguma definição psiquiátrica. Outros me acusarão de sonhador, rótulo nem sempre cabível a mim, xerife da selva. Terceiro nem saberão do acontecido, por falta de cultura ou interesse. Mas a realidade que já torna-se prolixa de tão certa é que dei por falta do meu amor, um amor que é mistério e certeza, ainda que temporariamente apartado de mim pelo ilusório tempo e o não menos ilusó-rio espaço, um amor que me faz reconhecer a minha incompletude e faz saber que hora haverá em que as misteriosas leis do universo tra-lo-á de volta a mim, árvore e fruto dessa fatalidade divina.

31/08/99.

12.5.06

A VINGANÇA DO POPSTAR

O POPSTAR, A VINGANÇA DO BONECO – O gênio trama a vingança dos (a) inocentes que o ignoraram Marcelino Rodriguez


Ontem ao constatar o preço da água mineral Perrier e do legítimo bacalhau norueguês, percebi que o nobel pra mim chegará em boa hora, além de fazer-me refletir sobre as posturas profissionais que deverei adotar tão logo a mídia internacional divulgue meu nome como seu legítimo ganhador.Já me vejo com o prêmio.Minha bela, distinta e nobre figura de “Boneco de Deus” nas rádios, televisões, vídeos, jornais, toques de celulares, walppapers e tudo mais.Um The Best.Penso que vou ficar mais misterioso e silente que de costume. Terei meia dúzia de frases lapidares para as ocasiões. Será realmente uma experiência só comparável aquela que tinha quando namorei uma mau caráter e ela usava e abusava de mim, nos mais variados combates corpo a corpo. Eu adorava perder.Tenho que admitir que caráter a parte, era uma Fêmea fatale.Sei que minha rotina mudará e minhas mídias pessoais terão de ser mudadas, devido ao assédio.Já me imagino escolhendo a secretária, a cozinheira, a roupeira, a escovadeira de dente, a massagista sueca, etc.Comprarei um castelo na Galicia e passarei algumas agradáveis tardes conversando com Saramago sobre a fome no mundo. Doarei dez por cento do premio a uma instituição qualquer , para não me acusarem de egoísta.Tudo isso será bom.Assim como pensar que aqueles que ignoraram meu mega talento ou as que ignoraram minha fome de afeto, se perderão em divãs de arrependimento por não terem reparado que eu também era belo e brilhante antes da Ferrari e de um belo rótulo. Mandar-me-ão escraps, mas não estarei mais aqui. Outros vão querer o livro e o mesmo estará esgotado. Depois que a fortuna vier, minha missão de escrever estará cumprida. Terei ganho a batalha.E os mais carentes poderão viver com a venda da minha imagem, porque o sujeito mesmo vai desaparecer pelos fundos. O mundo não terá dinheiro para pagar meu sossego.Pensem nisso. Ainda é tempo. Caminho a passos largos para o nobel.Agora deixem-me checar se o bacalhau comprado é mesmo da Noruega, afinal de contas comprei sem passaporte e a corrupção anda solta. “Só sabemos o que é bom quando provamos.” (Essa vai ser uma das minhas frases lapidares pós-nobel). E tenho dito.10/05/2006

10.5.06

VIDA DE SOLDADO

VIDA DE SOLDADO


Uma intensa melancolia levava J ao abrigo dos franciscanos, uma dor que ele sabia única. Toda formação da sua alma, na parte mais profunda, era Bíblica. A leitura do Novo Testamento na juventude pusera Jesus como ponto central da sua vida. Com Jesus ele aprendera a exercitar a solidariedade, a viver pensando também na vida futura, além de não fazer questão também de coisas menores. A literatura também o estragara. Era um homem nobre e pagara um preço caro por dar-se ao luxo de cultivar-se e viver entre incautos, gente barbara que detesta cultos e cultura. A frase de Nieztsche em Zaratustra o levava ao mosteiro: “ Tivesse Cristo vivido mais alguns anos, teria mudado sua doutrina”. Essa era a verdade que sentia agora e doer-lhe a alma. Não concordava com o Deus que Cria. Tinha trinta e cinco anos e um desprezo silencioso pela humanidade. Nos últimos dois anos então, a despeito de suas boas intenções e qualidades, não achava nada. Nem amores, nem amigos, nem trabalhos. Não na proporção que o tornasse menos triste. Ainda por cima tinha a pobreza como uma carga, o que o tornava mais vulnerável e nu as gentes. Já tinha sofrido todo tipo de maldade de seus próprios parentes. Lembrava o olhar de desprezo da mãe ao olhar para ele. Que tinha feito? E a rispidez humana? Qual era a finalidade? E a falta de interesse e amor ao criador? A covardia? Olhava as pessoas jogadas no chão e perguntava-se: quem é o responsável? Odiava a brutalidade. Tremia a cada ato de deselegância. Da mais grosseira a mais sutil, sobre tudo a deselegância o incomodava. È feia a raça humana, concluía. Chegava a sentir laivos de desprezo por Deus, por criar tal massa de famintos. Era um Deus mesmo que criava tudo? Com esses pensamentos íntimos, bateu a grande porta do mosteiro. Um jovem Franciscano veio atendê-lo. ´´ Pois não, Senhor” “Procuro o Igor, o líder de Vocês.” “Ah, sim. Pode entrar. Aproveita que estamos comemorando o aniversario de um dos internos. Tomé.” J entrou e viu os franciscanos completamente misturados ao pobres, mendigos, aleijados. Ficou impressionado com o número de mutilados que viu: uns vinte. Todos homens. Um deles, arrastando a cadeira, veio perguntar-lhe se queria uma fatia de bolo. Aquilo o comoveu um pouco. Ao mesmo tempo ficou chocado com tanta pobreza. Os banheiros eram coletivos e abertos. Foi vendo com Igor outros internos. Havia em quase todos internos uma ferida, uma chaga aberta. Muitos fumavam. J pensou que estaria aprendendo ali, naquele lugar. “Igor, se importa de conversar comigo um pouco?” “Não, claro”. “ Bem. Ouvi falar do trabalho de Voces , achei bonito, nobre, mas ando com um questionamento profundo, uma angústia grande em relação a minha fé. “ “Como assim?” “ Creio em Jesus. Mas não creio que o homem deva ser salvo. Os homens são ruins. Não acho boa coisa salvar a humanidade. Acho inútil. ” Igor olhou J de modo estranho... “ Você não tem amor?” “Tenho. Esse é o problema. Não me falta amor. E aqui estou, cheio de amor e sem nada, nem ninguém. Não aproveitaram meu amor. “ “Como dizia Francisco: o amor não é amado.” “Por que Voce faz esse trabalho?” “Vocação, acho” “Pois é. Teve um tempo que até pensei em ser padre, depois monge. Mas o mundo desviou-me. Hoje creio ainda na mensagem, que Jesus é o Messias, mas não creio na salvação dos homens. Eu não os salvaria. Igor, posso te pedir uma coisa? “ “Sim”. “Posso dormir aqui?” Igor olhou em volta, pensou. “ Você não tem onde dormir?” “Tenho. Mas não estou bem. Quero sentir essa experiência. “ J pensou na hesitação de Igor que até um mosteiro tem sua porção de má-vontade. Será que ele vai mandar-me embora agora, alta noite? “Lá em cima tem um saco de dormir sobrando. Boa noite.” J dirigiu-se a parte superior do mosteiro, enquanto via aos poucos as luzes de baixo, - onde ficava a maioria dos pobres e mutilados -, se apagando. Ali estava ele, sem nada. Pedindo asilo aos pobres. Pensou abandonado entre as cobertas se Deus não seria ou não queria apenas aquele abandono, aquela pureza, aquela entrega ao nada infinito. Na manhã seguinte, J olhou do parapeito do segundo andar e viu os monges vestidos de Francisco misturados com os pobres, compondo um cenário digno de idade média. Perguntou-se em que tempo se sentia. Ou estava. Dirigiu-se ao refeitório, onde os cinco jovens monjes de não mais de dezoito anos distribuíam-se nas tarefas. Igor já havia saído. Não era santo nem pobre o suficiente para ficar. Levou dois monges ao ponto, pagou a passagem de um deles e vinha olhando o mundo dos homens pela janela. “Que tipo de soldado sem causa sou?” – ia pensando, enquanto as paisagens sucediam-se entre prédios de concreto e fumaça negra. 19.10.2005.

Direitos Reservados

8.5.06

MAR DO LEME

Texto publicado no livro A ILHA, em 1999.

MAR DO LEME

Na tarde nublada, dois amigos conversavam sentados num banco do calçadão do Leme, olhando o mar. Era frio. — Jacques, já aconteceu isso contigo também, ser abandonado na hora mais imprevista, na hora que você mais precisava da mulher, sem mais nem menos? — Já, rapaz. Isso é mais comum do que a gente pensa. — Dá pra me contar; preciso acreditar que alguém já passou por isso. Ficar sem nada. — Bem, eu havia deixado a carreira militar, fiquei desempregado, gostava muito dela. De repente, ela chegou pra mim, falou que eu estava atrapalhando. — Atrapalhando? — É. Que ela tinha que estudar... Eu falei: não, mais você não pode me deixar agora... Como tu vê, Carlos, parece que elas escolhem a pior hora... — Você ficou mal, né? — Pensa que é só contigo, meu caro. — Carlos acabara de ser dispensado pela garota. Não tinha mais recursos humanos que o amigo, além da sua dor. Já tinha duas horas que estavam olhando o mar, conversando o mesmo assunto e tentando entender porque ele fora dispensado. Relembrava o quanto ficou mal ao vê-la partir. Tinha ímpetos absurdos de fazer voltar o tempo e tentar convencê-la do contrário. Começara a chover fino. — Jacques, vou te dizer uma coisa. Nem Deus eu perdôo. Não há nada que vai fazer isso passar. Não vou esquecer nunca. Só ela, mais ninguém pode consertar, você entende? — É. Eu sei. — Vamos tomar um café? — Vamos. Depois de tomar o Café, Carlos dirigiu-se ao ônibus e ficou olhando o amigo partir. Sabia que ele entendera. Era bom ter um amigo.
Era o que lhe restava. 7/1999.

6.5.06

O MILAGRE

O MILAGRE

Era recém - casada e começava a sentir o peso do cotidiano. Aquele dia igual, a casa silenciosa, o marido que molhava sua toalha ao tomar banho, tudo aquilo fazia com tivesse crises de angustia. A insatisfação era notória no seu rosto. Passou assim a primeira semana, pensando em fugir, em anular o casamento. Também a Segunda semana, onde a casa pequena, os afazeres domésticos, o apartamento de fundos, tudo a fazia ter sentimentos contraditórios com aquele que casara. Tinha saudades do tempo que vivia só para si, na casa dos pais, com a mesa posta e a casa arrumada sem que tivesse que dispender maiores esforços. Na terceira semana, porem, começou ver as mesmas cenas de modo diferente: a janela, a mesa que arrumava religiosamente, a comida que fazia, o sono inocente do marido, os caminhos do bairro, tudo parecia determinado e escrito para ela, como um novo corpo. Tomava banho com mais graça, pintava as unhas, ia no cabeleleiro, sentia ciúmes, cuidava de cada detalhe da casa com denodo. Lembrava com prazer trechos do que já fora vivido e ,a noite, entregava-se com êxtase. Aquele homem fora como um Deus na sua vida, mudando todos os seus planos, inclusive as partes recônditas da sua alma. Numa manha, quando o marido dera uma saída, foi que percebeu, pela primeira vez ao ver um passaro na janela, que seus olhos haviam mudado. Nunca olhara um passaro daquele jeito, como se ele fosse uma revelação metafísica. Onde seria seu ninho? Por que pousara na sua janela? Sim, agora ela percebera o milagre que lhe acontecera. Não adiantava rebelar-se com o criador. E entendeu o provérbio bíblico pela primeira vez com toda intensidade: “macho e fêmea vos criou”. Rezou a Deus em silencio, como só as mulheres sabem fazer, pedindo para que aquele homem nunca a abandonasse. Havia percebido ser inteira... 19/01/2003

Direitos Reservados.

3.5.06

DURA MINHA NADA VIDA DE POPSTAR

Marcelino Rodriguez
Parece que nasci mesmo para escrever; não tem jeito. O fato é que graças ao laborioso trabalho de anos e a divulgação dos meus textos no Blog e em alguns sites tornaram-me, a despeito da minha despretensão, uma celebridade virtual. Um pouco mais de esforço e o Garcia Marques perto de mim vai ser um papagaio de pirata. Basta clicar meu nome em qualquer busca e la´estou eu rastreado tão facilmente como qualquer popstar, mas sem os capangas que esses tem para se defender. Já ocorreu-me até um caso em que eu me manifestava e ninguém acreditava que eu era eu, como já se passou com outros famosos. Eu disse num Chat que jamais casaria com uma mulher que não soubesse cozinhar e que os talentos domésticos deveriam ser ensinado na mais tenra infância as meninas. Machista e "sem noção" foram as mínimas coisas das quais me xingaram , além de que ninguém acreditava que um escritor pudesse falar isso. Que é preciso ensinar as jovens lavar, passar, cozinhar, cuidar da casa, assim como ensinar aos meninos as diversas artes da sobrevivência e da civilidade.
Dito isso, qualquer opinião que expresso ou mesmo uma simples corrente que eu passe adiante torna-se, com toda razão, motivo de questionamento, como se eu fosse uma espécie de presidente da república não reconhecido e não remunerado, mas cuja opinião é motivo, quando aparentemente erro na "boa intenção" alvo de ameaças veladas, ironia mordaz e pedido de retratação imediata sobre pena de perder imediatamente a credibilidade.
Nada fácil ser um popstar, sobretudo virtual. Mas a gente também se diverte.
Uma amiga do Mato Grosso pede que eu explique ter repassado uma corrente que sugeria de forma hilária que os bons músicos morrem tragicamente , citando os que morreram de Aids, Overdoses e acidentes automobilísticos, enquanto outros de axé, pagode e tais gozam de perfeita saúde e crescem como capim no gosto da plebe ignara. Fiquei suando calafrios quando outra pessoa sugeriu que havia um certo "teor racista" na corrente que chamava o nego de negão.
Um perigo.
O humor mais sofisticado está morto.
Temos que ser didáticos a todo momento. Nos policiarmos.
Por isso interrompi aqui minha leitura de Isabel Allende, que vive nas montanhas do primeiro mundo e , segundo ela, não sente a mínima vontade de voltar para o terceiro, para responder a minha amiga querida que questiona que não existe "o bom gosto", existe gosto e pronto. Como se uma pessoa que nunca comeu bacalhau pudesse opinar sobre o gosto do mesmo, ainda tirando uma onda dizendo que ovo é melhor. Mexeu nos meus brios intelectuais e no pouco caráter que me resta, porque tenho que adaptar-me ao gosto moderno, entre os quais se tem o caráter como desnecessário e os medíocres desfilam em limusines e ditam regras, leis e comportamento.
Nessa questão eu tenho mesmo opinião.
Existe o mau-gosto.
O mau gosto não é uma questão de escolhas, mas de comportamento.
È como a sujeira nas ruas.
A opção está nas mãos do cidadão.
O caso é que um cidadão que escuta "Vitrines" de Chico Buarque, por exemplo, não vai jogar a casca de banana na rua; já o que escuta "Baba Baby, Baba" vai jogar, é quase certo. Podem acreditar. É uma questão de afinidade.
Enfim, como popstar virtual, opino também que o gosto é uma questão de saber ou poder escolher entre bacalhau e ovo.
Mas vivemos aqui no fim do mundo, na ditadura da fritada. Enfim, estamos fritos.
Vou voltar para meu "País Inventado", vou voltar para Isabel. Explicar fritada é dose.
02/05/2006