10.5.06

VIDA DE SOLDADO

VIDA DE SOLDADO


Uma intensa melancolia levava J ao abrigo dos franciscanos, uma dor que ele sabia única. Toda formação da sua alma, na parte mais profunda, era Bíblica. A leitura do Novo Testamento na juventude pusera Jesus como ponto central da sua vida. Com Jesus ele aprendera a exercitar a solidariedade, a viver pensando também na vida futura, além de não fazer questão também de coisas menores. A literatura também o estragara. Era um homem nobre e pagara um preço caro por dar-se ao luxo de cultivar-se e viver entre incautos, gente barbara que detesta cultos e cultura. A frase de Nieztsche em Zaratustra o levava ao mosteiro: “ Tivesse Cristo vivido mais alguns anos, teria mudado sua doutrina”. Essa era a verdade que sentia agora e doer-lhe a alma. Não concordava com o Deus que Cria. Tinha trinta e cinco anos e um desprezo silencioso pela humanidade. Nos últimos dois anos então, a despeito de suas boas intenções e qualidades, não achava nada. Nem amores, nem amigos, nem trabalhos. Não na proporção que o tornasse menos triste. Ainda por cima tinha a pobreza como uma carga, o que o tornava mais vulnerável e nu as gentes. Já tinha sofrido todo tipo de maldade de seus próprios parentes. Lembrava o olhar de desprezo da mãe ao olhar para ele. Que tinha feito? E a rispidez humana? Qual era a finalidade? E a falta de interesse e amor ao criador? A covardia? Olhava as pessoas jogadas no chão e perguntava-se: quem é o responsável? Odiava a brutalidade. Tremia a cada ato de deselegância. Da mais grosseira a mais sutil, sobre tudo a deselegância o incomodava. È feia a raça humana, concluía. Chegava a sentir laivos de desprezo por Deus, por criar tal massa de famintos. Era um Deus mesmo que criava tudo? Com esses pensamentos íntimos, bateu a grande porta do mosteiro. Um jovem Franciscano veio atendê-lo. ´´ Pois não, Senhor” “Procuro o Igor, o líder de Vocês.” “Ah, sim. Pode entrar. Aproveita que estamos comemorando o aniversario de um dos internos. Tomé.” J entrou e viu os franciscanos completamente misturados ao pobres, mendigos, aleijados. Ficou impressionado com o número de mutilados que viu: uns vinte. Todos homens. Um deles, arrastando a cadeira, veio perguntar-lhe se queria uma fatia de bolo. Aquilo o comoveu um pouco. Ao mesmo tempo ficou chocado com tanta pobreza. Os banheiros eram coletivos e abertos. Foi vendo com Igor outros internos. Havia em quase todos internos uma ferida, uma chaga aberta. Muitos fumavam. J pensou que estaria aprendendo ali, naquele lugar. “Igor, se importa de conversar comigo um pouco?” “Não, claro”. “ Bem. Ouvi falar do trabalho de Voces , achei bonito, nobre, mas ando com um questionamento profundo, uma angústia grande em relação a minha fé. “ “Como assim?” “ Creio em Jesus. Mas não creio que o homem deva ser salvo. Os homens são ruins. Não acho boa coisa salvar a humanidade. Acho inútil. ” Igor olhou J de modo estranho... “ Você não tem amor?” “Tenho. Esse é o problema. Não me falta amor. E aqui estou, cheio de amor e sem nada, nem ninguém. Não aproveitaram meu amor. “ “Como dizia Francisco: o amor não é amado.” “Por que Voce faz esse trabalho?” “Vocação, acho” “Pois é. Teve um tempo que até pensei em ser padre, depois monge. Mas o mundo desviou-me. Hoje creio ainda na mensagem, que Jesus é o Messias, mas não creio na salvação dos homens. Eu não os salvaria. Igor, posso te pedir uma coisa? “ “Sim”. “Posso dormir aqui?” Igor olhou em volta, pensou. “ Você não tem onde dormir?” “Tenho. Mas não estou bem. Quero sentir essa experiência. “ J pensou na hesitação de Igor que até um mosteiro tem sua porção de má-vontade. Será que ele vai mandar-me embora agora, alta noite? “Lá em cima tem um saco de dormir sobrando. Boa noite.” J dirigiu-se a parte superior do mosteiro, enquanto via aos poucos as luzes de baixo, - onde ficava a maioria dos pobres e mutilados -, se apagando. Ali estava ele, sem nada. Pedindo asilo aos pobres. Pensou abandonado entre as cobertas se Deus não seria ou não queria apenas aquele abandono, aquela pureza, aquela entrega ao nada infinito. Na manhã seguinte, J olhou do parapeito do segundo andar e viu os monges vestidos de Francisco misturados com os pobres, compondo um cenário digno de idade média. Perguntou-se em que tempo se sentia. Ou estava. Dirigiu-se ao refeitório, onde os cinco jovens monjes de não mais de dezoito anos distribuíam-se nas tarefas. Igor já havia saído. Não era santo nem pobre o suficiente para ficar. Levou dois monges ao ponto, pagou a passagem de um deles e vinha olhando o mundo dos homens pela janela. “Que tipo de soldado sem causa sou?” – ia pensando, enquanto as paisagens sucediam-se entre prédios de concreto e fumaça negra. 19.10.2005.

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